F G Figueira & Cia.

Divagações, devagações e deformações.

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Local: Afghanistan

terça-feira, 25 de março de 2008

Refere-se ao Acordão do HC Nº 71.373-4, no STF

4- Arqueologia da palavra – Proposições de Filosofia da Linguagem aplicadas ao caso

A palavra é o instrumento de interação do homem com o mundo, suas mãos, seus pés, o foco de seus olhos. Mas assim sendo as palavras escolhidas denotam sentidos que queremos imprimir aos nossos discursos, conscientemente ou resultado de toda carga de conhecimentos não questionados que carregamos.
O mundo existe independente do homem, mas o mundo como o conhecemos é essencialmente dependente da mente humana para conhecê-lo. Muito elucidativo neste ponto é a passagem de Alice no bosque, no livro de Lewis Carroll:
“Este deve ser o bosque”, murmurou pensativamente, “onde as coisas não têm nomes”.[...]Ia devaneando dessa maneira quando chegou à entrada do bosque, que parecia muito úmido e sombrio. “Bom, de qualquer modo é um alívio”, disse enquanto avançava em meio às àrvores, “depois de tanto calor, entrar dentro do... do que?” Estava assombrada de não poder lembrar o nome. “Bom, isto é, estar embaixo das... debaixo das... debaixo disso aqui, ora”, disse colocando a mão no troco da árvore. “Como essa coisa se chama? È bem capaz de não ter nome nenhum...ora, com certeza não tem mesmo!”
Ficou calada durante um minuto, pensando. Então, de repente, exclamou: - Ah, então isso terminou acontecendo! E agora quem sou eu? Eu quero me lembrar, se puder.
Neste trecho de As aventuras de Alice por estar isolada de seus pares, os objetos do mundo ‘perdem’ seus nomes. Fica claro a função social da língua que, não tendo o grupo social para permitir a comunhão da fala, perde a sua necessidade. Perde também a necessidade de um nome próprio, visto que, as palavras (o nome “Alice”) se delimita pela negação dos outros nomes, e como não há outra pessoa, não há também “Alice”.
As palavras neste sentido têm uma conotação ideológica que não pode ser ignorada. Ideológico aqui não se presta a exprimir o seu sentido ordinário que hoje vem sendo cada vez mais usado, como se ideológico fosse tal ou qual posição política. Está relacionado o ideológico com valores, quaisquer que sejam. E a palavra é uma grande usina de valores, de uma realidade infinita, onde uma perspectiva é considerada de modo especial para receber um signo, e este é a palavra.
Um produto ideológico faz parte de uma realidade (natural ou social) como todo corpo físico, instrumento de produção ou produto de consumo; mas ao contrário destes, ele também reflete e refrata uma outra realidade que lhe é exterior. Tudo que é ideológico possui um significado e remete a algo situado fora de si mesmo. Por isso tudo mesmo que é ideológico, pois palavras são signos e nunca coisas em si. Os signos em essência são ideológicos. Um corpo físico vale por si próprio: não significa nada e coincide inteiramente com sua própria natureza. Neste caso não há ideologia, não há valores nas coisas do mundo, apenas quando coisas do mundo compreendidas pelo homem.
Trata-se de um universo à parte, particular que coexiste ao lado dos fenômenos naturais, do material tecnológico e dos artigos de consumo, é o universo dos signos .
Um signo não existe como parte de uma realidade apenas; ele também reflete e refrata uma outra. Ele pode distorcer essa realidade, ser-lhe fiel, apreende-la de um ponto de vista específico, etc. Todo signo está sujeito aos critérios da avaliação ideológica (id est: se é verdadeiro, falso, correto, justificado, bom, etc.). O domínio do ideológico coincide com o domínio dos signos: são mutuamente correspondentes.
Pierce asseverou que o processo de conhecimento sempre se inicia a partir do estado da mente no qual já se encontra o homem conforme um determinado contexto, inevitavelmente tomado de uma enorme massa de cognição já formada e não questionada. Essa massa de conhecimentos inquestionados pode ser vista na perspectiva da Filosofia da Linguagem como todos os significados ideológicos das palavras e que aceitamos sem qualquer crivo.
No acórdão aqui em estudo, há duas posições dos ministros, um grupo – o vencedor- defende que a simples negação em ceder material genético para a feitura do exame de DNA é ‘indício’ suficiente para que o julgador opte pela presunção da paternidade positiva. De outra ponta encontramos um grupo de Ministros que se filiam à idéia que a presunção judicial da paternidade, não consubstanciada em um exame com certeza real quase perfeita, configuraria, de certa monta, ofensa à dignidade do autor.
Este segundo grupo de Ministros – que não endossam a tese de que a negação em fazer o exame seria indício suficiente para o reconhecimento de paternidade e acreditam que para tanto é necessário um exame para corroborar e dar “substância” à decisão judicial- posição essa bem interessante se avaliada frente à técnica processual, como o Principio da Verdade Processual e da Autoridade da Coisa Julgada . O questionamento que se forma é o seguinte: se a decisão judicial que declara a paternidade, seja por presunção ou por exames, está coberta pelo autoridade chanceladora do Estado, da verdade formada processualmente, por que não se contentar com esta dimensão ? Qual a motivação de levar a frente uma medida dispendiosa que há em todos um sentimento de certeza que o resultado seria o mesmo? Neste ponto exporemos em seguida uma arqueologia de palavras, buscando no que foi dito significados profundos do que não foi dito, mas expresso.
O primeiro ponto que colocamos em destaque é o uso da palavra “filho” pelos Ministros Ilmar Galvão e Carlos Velloso -que negaram o Habeas Corpus. Por boa técnica jurídica, não há ainda, nenhum “filho” naquela relação processual, há sim duas partes, o investigante e o investigado. A relação de filiação só vem a surgir depois de encerrado o processo, com a coisa julgada material. Deste ‘ato falho’ dos Ministros podemos observar que, estes que já haviam descoberto o desfecho do caso, e que este era o mesmo que dos outros ministros – que se filiavam a corrente do indício de paternidade - mas que falta para ambos a prova material, a prova científica, que configura uma espécie de “Coisa Julgada Moral”. Sintetiza com precisão essa posição o que diz o Ministro Néri da Silveira ao critica-los, seria, portanto assim o raciocínio: “sempre alguém poderá levantar dúvida e isso feriria a dignidade do autor, porque o complexo das provas não seria definitivo”.
A conclusão que chegamos é que esse grupo de Ministros já havia chegado a mesma solução que os outros -que é pela declaração da paternidade- o que os diferencia dos demais é que há no discurso destes uma grande preocupação com as conseqüências sociais possíveis desta decisão, baseada em indícios. Estão preocupados em como a dignidade do investigante pode ser ofendida sempre que, pelas ruas da cidade onde mora, for levantada dúvida da sua paternidade, que embora corroborado pela decisão judicial, não tem o peso moral do exame científico. Mais uma vez ponto para o descrédito social que o judiciário tem frente a população, que necessita dos tais exames de laboratório para proporcionar a sensação e certeza de justiça para seus jurisdicionados e a população de modo geral.

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